Artigo – 2ª Publicação

LUGAR DE MEMÓRIA: O PLANO URBANÍSTICO DE BOA VISTA-RR

Paulina Onofre Ramalho

Boa Vista é a única capital brasileira a situar-se totalmente no hemisfério norte. Localiza-se em uma região de campos abertos à margem direita do rio Branco, tendo sua gênese relacionada à instalação, em 1830, de uma fazenda particular de gado bovino. Em 1858, através de lei provincial, foi estabelecida a Freguesia de Nossa Senhora do Carmo, sediada junto à antiga fazenda. Um dos objetivos deste ato foi fortalecer a presença do Estado na região e afastar qualquer possibilidade de perda deste território para outros países. A freguesia fazia parte do município amazonense de Moura. Anos mais tarde, mais precisamente em 1890, criou-se o município de Boa Vista do Rio Branco, com a freguesia sendo elevada a categoria de Vila (OLIVEIRA, 2003). Mas, esse ato não foi suficiente para incrementar o processo de povoamento da região. Um movimento migratório mais significativo só foi verificado com a criação do Território Federal do Rio Branco (SANTILLI, 1994).

Em 27 de agosto de 1926, de acordo com a Lei estadual nº. 1262, o governador do Amazonas, Ephifânio Ferreira Sales, concedeu foro de cidade à Vila de Boa Vista. O que não contribuiu para a melhoria de suas condições estruturais, que continuaram extremamente precárias. Desse modo, à época da instalação do Território Federal do Rio Branco, em 1943, encontrava-se desarticulada em termos econômicos, políticos e infraestruturais. Sendo assim, elevada à condição de capital do Território, sobre Boa Vista incidiu uma política modernizadora que incluiu a implantação de um plano urbanístico a partir de 1946. A análise desse plano como um lugar de memória, ou seja, um documento do passado instituído a partir da relação entre a História e a memória, será nosso foco. Analisaremos a constituição e formalização de uma memória oficial da cidade que tem como suporte esse lugar em seus aspectos materiais, simbólicos e funcionais.

A IMPLANTAÇÃO DO PLANO URBANÍSTICO

O Território Federal do Rio Branco foi criado oficialmente em 13 de setembro de 1943, através do Decreto-Lei n.° 5.812, sendo posteriormente retificado pelo de n.° 5.839, de 21 do mesmo mês e ano, com território desmembrado do estado do Amazonas. Nesse contexto, o Território Federal do Rio Branco foi alvo da política desenvolvimentista de Getúlio Vargas, a partir do seu projeto de integração, colonização e povoamento, saneamento e proteção das fronteiras, que buscava criar novas condições estruturais, políticas e econômicas, com a consequente dinamização do espaço.

Para propiciar as novas condições tidas como essenciais para o desenvolvimento da Amazônia, o Estado demandou esforços com o intuito de implementar um aparelho administrativo próprio nos territórios, formando uma máquina burocrática. Desse modo, o capitão Ene Garcez dos Reis foi nomeado, em 1944, como governador do Rio Branco. Dentre as políticas que efetuou, destaca-se o novo reordenamento espacial, condizente com o projeto político do Estado Novo, ao implementar um plano urbanístico que procurou dotar a cidade de Boa Vista da infraestrutura necessária à sua condição de centro administrativo e capital do novo território.

A reforma urbanística de Boa Vista foi posta em prática a partir de 1946 pela empresa carioca Riobras, de acordo com um projeto concebido pelo seu proprietário, o engenheiro civil Darcy Aleixo Derenusson, sob as diretrizes de Ene Garcez. O processo de licitação para a elaboração do plano ocorreu em 1944, do qual participaram quatro empresas. Por apresentar preço total mais baixo e menor prazo de execução, a então denominada Firma Darcy A. Derenusson foi contemplada no dia 20 de setembro de 1944.

Depois de assinado o contrato da obra, Derenusson e mais três auxiliares se deslocaram até a cidade de Boa Vista para realizar os estudos necessários para o desenvolvimento do projeto de urbanização. Segundo Derenusson, a cidade por ele encontrada já possuía o Hospital Coronel Motta, a Igreja Matriz e o prédio da Prelazia. Entretanto, a situação geral era problemática, posto que o nível de serviços públicos era precário. Por exemplo, seus aproximadamente 1.800 habitantes circulavam por ruas de terra batida e conviviam com condições habitacionais deficientes, pois havia apenas umas oito casas cobertas de telhas, algumas de zinco e a maioria com tetos de palha de buriti (JORNAL A GAZETA DE RORAIMA, 1991) (Figura 1).

Figura 1 – Cidade de Boa Vista em 1944.

Fonte: Acervo de Darcy Romero Derenusson.
Fonte: Acervo de Darcy Romero Derenusson.

Derenusson, nessa primeira viagem a Boa Vista, passou sete meses fazendo levantamentos sobre as necessidades da futura capital e colhendo informações, diretamente com a comunidade, sobre as carências da população. Além disso, realizou o levantamento topográfico da cidade e, dos estudos in loco, resultaram 1000 plantas que detalhavam a quantidade de materiais necessários a cada obra pretendida. De posse dos dados, Derenusson retornou ao Rio de janeiro e formou uma equipe de técnicos para a elaboração dos projetos de abastecimento de água, geração de energia elétrica, coleta de esgotos e águas pluviais, bem como o Plano Diretor de Urbanismo e o Código de Obras (JORNAL A GAZETA DE RORAIMA, 1991).

Além dos levantamentos, algumas medidas foram importantes para que a implantação do plano seguisse as linhas do projeto de Derenussson. Adotando uma sugestão apresentada pelo próprio Derenusson, o Governo do Território baixou um decreto proibindo que novas construções, de caráter permanente, fossem erigidas antes da conclusão do plano de urbanização. E mais, o Código de Obras estipulava para as edificações, residenciais e comerciais, um número máximo de dois pavimentos e para os terrenos uma área de 15×40/20x40m (JORNAL A GAZETA DE RORAIMA, 1991).

No contexto em questão, o Estado também se valeu de medidas educativas para conseguir adesão à sua política de urbanização, especialmente enfatizando as melhorias que o plano proporcionaria em termos de saúde, educação e transportes, dentre outros. (JORNAL A GAZETA DE RORAIMA, 1991). Além disso, acessou as aspirações pela modernidade presentes na elite3 boavistense, que ressentia-se do provincianismo a que foi relegada durante o governo do estado do Amazonas na região.

AS OBRAS

Embora tenha aventado a construção do plano, Ene Garcez dos Reis não pode acompanhar a sua implantação. Ao cair o Estado Novo, em outubro de 1945, esse administrador foi exonerado, deixando o governo em janeiro de 1946 (MACEDO, 2004). Garcez foi substituído pelo Tenente-coronel Félix Valois de Araújo. Inicia-se nesse período uma grande instabilidade política no território, com os governadores se sucedendo após curto mandato (OLIVEIRA, 1991). Em termos de repercussão para o plano urbanístico, Veras (2009) informa que os governadores subsequentes deram continuidade a sua execução, pois seguiam as diretrizes do Plano Quinquenal de Ene Garcez.
Dada a realidade socioeconômica do Território e as condições de infraestrutura precárias da cidade de Boa Vista, uma série de serviços foi realizada pela empresa Riobras, entre os anos de 1944 a 1946, antes da implantação do plano: levantamento topográfico plani-altimétrico e cadastral da Vila de Boa Vista e arredores, que cobriu uma extensão de 20 km², com a confecção de planta na escala de 1:1000; recenseamento geral da população; estudos socioeconômicos necessários a elaboração do Plano; elaboração do Plano Diretor da cidade; elaboração do plano urbanístico, propriamente dito, com os detalhes para a sua execução; concepção do Código de Obras; projeto de abastecimento de água, inclusive com o detalhamento da captação, adução e rede distribuidora; projeto da rede coletora de esgotos sanitários (separador) e seu detalhamento; projeto de galerias de águas pluviais e seu detalhamento; projeto de energia elétrica e rede distribuidora com detalhamento e; projeto de escolas rurais e residências (REVISTA SELVA, 1950; VERAS, 2009).

No processo de execução das obras do plano, algumas limitações foram observadas no que diz respeito à questão da mão-de-obra e de provimento de materiais. A firma Riobras necessitou contratar trabalhadores advindos das cidades de Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro (JORNAL A GAZETA DE RORAIMA, 1991). No tocante aos materiais construtivos, a solução encontrada foi providenciar a construção de uma olaria, situada às margens do rio Branco, ligada a própria Riobras. A olaria passou a fornecer telhas e manilhas de barro, usadas nas obras de esgoto sanitário, e tubos de concreto – até 1m de diâmetro – usados nas galerias de águas pluviais, num total de 400 unidades diárias (REVISTA SELVA, 1950; VERAS, 2009).

Além dos problemas acima mencionados, a efetivação do plano urbanístico foi prejudicada devido à questão orçamentária (VERAS, 2009). Inicialmente previsto para ser posto em prática entre os anos de 1944 a 1950, sua execução adentra pelas décadas seguintes, concretizando-se apenas na década de 1970, causando prejuízos para a população.

SOBRE OS LUGARES DE MEMÓRIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PLANO URBANÍSTICO

Para Von Simson a memória pode ser entendida como “a capacidade humana de reter fatos e experiências do passado e retransmiti-los às novas gerações por meio de diferentes suportes empíricos” (2004, p. 11). Esta
pode ser individual ou coletiva e, sendo um fenômeno construido coletivamente, é relacional e, como tal, sujeita a mudanças, acomodações e flutuações. Além disso, percebe-se um caráter seletivo na memória, que exclui, aproxima, esquece, relembra, dentre outros (POLLAK, 1992).

Segundo Pollak (1992), os elementos constitutivos da memória são os acontecimentos vividos pessoalmente; em seguida, aqueles vividos por tabela, isto é, vividos pelo grupo ou coletividade ao qual pertence o sujeito que os toma para si; pessoas, personagens (com as quais nem sempre mantivemos contato direto) e os lugares. Os lugares da memória ligam-se a determinadas lembranças, que são importantes para a memória do grupo.

Nora (1993) parte do princípio de que não há mais memória, porém apenas lugares nos quais ela se cristaliza e se refugia. Entretanto, nem tudo que nos foi delegado pelo passado, nem todo objeto que nos trás alguma lembrança pode ser entendido como um lugar de memória. O que distingue os lugares de memória de outros documentos e sinais é a existência simultânea das dimensões materiais, simbólicas e funcionais. Sempre presentes, esses aspectos são os elementos vitais de sua composição. Ademais, um lugar de memória se configura como tal a partir de uma vontade de memória. É essa vontade que se inscreve no cerne de sua origem e respalda as características
que o moldam. Contrariamente, a ausência de uma intenção faz dos lugares de memória apenas lugares de história.

Considerando as discussões tecidas até o momento, acreditamos que o plano urbanístico de Boa Vista se constitui um lugar de memória, pois fundou-se a partir do pressuposto da vontade de memória e apresenta seus
três fatores essenciais (materialidade, simbolismo e funcionalidade).

O traçado do plano urbanístico é radiocêntrico, com uma ampla praça central, sede dos poderes executivo, legislativo e judiciário, a partir da qual partem largas avenidas para o norte, sul e oeste. Derenusson afirmou que foi dele a ideia de traçar as radiais cortadas por perimetrais ligando os vários extremos da cidade. Na concepção do projeto, o epicentro do desenho foi alocado na Praça do Centro Cívico, por ser considerado o centro geométrico de Boa Vista. O respeito ao traçado e as edificações preexistentes se constituiu em uma das premissas básicas a ser observada na elaboração do plano urbanístico. O que resultou, para Derenusson, em uma “Boa Vista com traços urbanísticos modernos sem deixar para trás as suas origens. Minha preocupação foi de não destruir os prédios já existentes e, com isso, destruir a memória de uma cidade” (JORNAL A GAZETA DE RORAIMA, 1991, p. 5).

Embora as preocupações com a memória da cidade fossem expressas, o seu maior referencial foi, de certo modo, desconsiderado: o rio Branco. Sobre a questão, Martins esclarece que:

“Em termos de localização geográfica, o Rio Branco parece ter sido importante referencial para o planejamento da cidade. Isso não implica, contudo, na valorização do rio para a composição desse desenho. Correndo, naquele trecho, no sentido nordeste – sudoeste, o Branco compõe, no plano da cidade, a base a partir da qual a ocupação urbana deveria crescer num sistema radial-concêntrico (…) O novo traçado da cidade previu um importante deslocamento do centro do poder. Representado pelo Prédio da Intendência e localizado à margem do rio, o poder público seria alocado ainda em paralelo ao Rio Branco, mas em terreno mais distante e destinado a compor uma praça central que abrigaria os três poderes (2010, p.1-2).”

Nesse termos o poder (central) se materializava no Território Federal do Rio Branco. Isto é, criando um palco (o plano urbanístico) no qual os seus atores (representantes) encenavam determinada concepção de Brasil (forte, integrado, etc.) (BALANDIER, 1982). Esse fato nos leva a refletir sobre a caracterização do plano como um lugar de memória, ou seja, um documento do passado intencionalmente perpetuado e que apresenta em sua essência a junção de três aspectos (material,simbólico e funcional) (NORA, 1993). Sabemos que:

“no decorrer de sua história toda cidade se enriquece de lugares aos quais pode ser atribuída uma função simbólica, recebida por destinação ou em virtude de algum acontecimento. São os teatros onde se apresentam a sociedade “oficial” e, inversamente os em que se “manifesta” o protesto popular (BALANDIER, 1982, p. 11-12).”

Assim, a elaboração do plano urbanístico ultrapassou as questões meramente técnicas, constituindo-se um lugar privilegiado de referências simbólicas. Algumas das concepções ideológicas subjacentes ao plano foram explicitadas pelo engenheiro Darcy Aleixo Derenusson, em entrevista ao jornal A Gazeta de Roraima em 1991:

“Partindo de um centro gerador, busca os confins do norte de nosso território, irradiando a energia de seu povo, como a protegê-lo, Roraima, guardião do Norte.
Lembrem-se. Na época em que foi projetada a planta da cidade de Boa Vista (1944- 46) estávamos no fim de uma guerra. E já muito antes disso, não poucos olhos gulosos invadiam nossas fronteiras com missões exploradoras e uma variedade de expedientes para se firmarem e ocuparem nossa terra. Mais do que simples radiais, mais do que um simples leque, seria a própria alma brasileira, presente, com o corpo e o coração, para garantir a integridade de nossos limites. É, portanto, o sistema radial o símbolo de união territorial, social, linguístico e ideário do povo brasileiro do Extremo Norte (p. 127-128) (Grifo nosso).”

Percebemos como as discussões que permeavam o cenário brasileiro à época foram significativamente apropriadas durante a formulação do projeto, principalmente o princípio geopolítico de defesa das fronteiras, cuja fragilidade colocava em risco a soberania nacional. Como afirma Derenusson, o leque imbuía-se de um sentimento de brasilidade para além dos aspectos físicos, traduzindo o espírito do homem dessa porção territorial do país. Reforçar, de forma simbólica e material, a presença do estado na região, eis o grande objetivo do plano urbanístico (Figura 2).

Figura 2 – Maquete do Plano Urbanístico de Boa Vista-RR.

Fonte:Acervo de Darcy Romero Derenusson
Fonte:Acervo de Darcy Romero Derenusson

Além de palco para a encenação do poder do Estado, o projeto desenvolvido imbuiu-se de uma proposta de modernização que visava conferir à cidade um aspecto civilizado. Na busca por esse objetivo, o governo do território elaborou medidas que estabelecessem um forte contraste com a realidade anterior, que julgava tenebrosa (CAVALCANTI, 1949), de modo a apresentar-se como um agente progressista e dinâmico. Dentro dessa perspectiva, a cidade velha deveria submergir e, em seu lugar, estabelecer-se uma cidade que representasse os novos tempos. Como nos informa Barros:

A “cidade velha” e lusitana dos tempos da pecuária exclusiva e dos primeiros esforços de mineração remanesceu no declive do terraço ribeirinho, mirando o rio Branco, enquanto o estado federal tratou de construir uma nova cidade na superfície quase perfeitamente plana e monótona, de campos, com horizontes sem fim, em cuja direção iam as vias radiais, e dando as costas aos detalhes caprichosos dos níveis dos terraços ribeirinhos, das sinuosidades das margens do rio, e do verde da floresta ciliar do rio Branco (1995, p,151).

A “cidade velha” e lusitana dos tempos da pecuária exclusiva e dos primeiros esforços de mineração remanesceu no declive do terraço ribeirinho, mirando o rio Branco, enquanto o estado federal tratou de construir uma nova cidade na superfície quase perfeitamente plana e monótona, de campos, com horizontes sem fim, em cuja direção iam as vias radiais, e dando as costas aos detalhes caprichosos dos níveis dos terraços ribeirinhos, das sinuosidades das margens do rio, e do verde da floresta ciliar do rio Branco (1995, p,151).

Figura 3 – Boa Vista e o rio Branco em 1944.

Fonte: Acervo Darcy Romero Derenusson.
Fonte: Acervo Darcy Romero Derenusson.

O projeto do Estado Novo para a Amazônia pautou-se em visões antagônicas como paraíso/inferno verde, atraso/possibilidades infinitas, dentre outras e, a partir delas, formulou políticas que propiciassem o desenvolvimento da região e, consequentemente, a resgatasse da barbárie e a inscrevesse na civilização, irmanado-a à cultura nacional. Muitos meios foram empregados para alcançar essa finalidade, sendo que no Território Federal do Rio Branco esse discurso utilizou-se, também, do ideário urbanista.

No processo civilizador que estava sendo desenvolvido, o controle da ordem social perpassou a vigilância constante das práticas cotidianas. Assim, o governo de Ene Garcez dos Reis é lembrado como duro e ditatorial. Entre suas medidas destacam-se a proibição de reuniões e ajuntamentos, imposição de um horário limite para a circulação na cidade (até às 18 horas) e o castigo severo, à luz do dia, dos ditos arruaceiros. Tal postura era defendida como necessária para impor o poder central em uma terra considerada dominada pelo banditismo e pela falta de justiça. Como instrumento de suas práticas, o governo contava com um contingente de 200 homens armados (OLIVEIRA, 1991; SANTOS, 2004).

Ressaltamos, novamente, que a ideia de modernidade veiculada em Boa Vista ultrapassou as questões relativas à (re)estruturação do seu espaço físico através de um plano urbanístico. Muitos grupos foram excluídos do projeto do plano, nomeadamente os indígenas (OLIVEIRA, 2003).

As esferas políticas federal e local, ao relacionarem indígena com não civilização, reforçaram a defesa da integração dos índios ao projeto de unidade nacional propagado pelo Estado Novo. Desse modo:

com as reformas urbanísticas e a tentativa de ‘embranquecer o índio’, algumas famílias Makuxi, Taurepang e Ingarikó demonstraram resistência à integração na sociedade nacional, e ficaram temerosas com relação às ações violentas dos brancos, deslocando-se para o interior das regiões de lavrados ou serras (OLIVEIRA, 2003,p. 186) (Grifo nosso).

O modo como as questões indígenas foram excluídas da política do plano reforça a percepção de que na constituição e formalização da memória há esquecimentos e silêncios, não-ditos, que podem emergir a partir das brechas, das rupturas e descontinuidades da memória estabelecida (POLLAK, 1989). Assim, não podemos acreditar que as ações estatais foram simplesmente acatadas pela população, visto que uma reportagem do jornal O Átomo, de 1953, denuncia a ingerência problemática do governo em Boa Vista, ao mesmo tempo em que sinaliza com a possibilidade da população recorrer a medidas judiciais contra as desapropriações. Nesse sentido, comungamos com Balandier quando ele afirma que:

O poder estabelecido unicamente sobre a força ou sobre a violência não controlada teria uma existência constantemente ameaçada; o poder exposto debaixo da iluminação exclusiva da razão teria pouca credibilidade. Ele não consegue manter-se nem pelo domínio brutal e nem pela justificação racional. Ele só se realiza e se conserva pela transposição, pela produção de imagens, pela manipulação de símbolos e sua organização em um quadro cerimonial. Estas operações se efetuam de modos variáveis, combináveis, de apresentação da sociedade e de legitimação das posições do governo (1982, p.7).

O cenário descrito até o momento nos remete ao trabalho de enquadramento de memórias coletivas que se processa de modo formal e informal e em diferentes contextos. Como observa Pollak (1992), os rastros do trabalho de enquadramento não constituem apenas os acontecimentos e personagens, mas também os objetos materiais. Desse modo, vislumbramos a implantação do plano da cidade de Boa Vista como um elemento oficial de enquadramento da memória, destinado a fomentar e manter as estruturas sociais e institucionais que estavam sendo alicerçadas.

Apesar da implantação do plano ter sido posta em prática pelos governadores que sucederam Ene Garcez, o traçado foi plenamente ocupado apenas no final dos anos 60 do século passado. No entanto, mesmo as mudanças que foram efetuadas no espaço urbano da cidade a partir do governo militar, que redundou no aumento do plano, “sendo ruas ampliadas e asfaltadas e as praças gramadas e arborizadas” (OLIVEIRA, 2003, p. 188), não desmobilizaram o apelo afetivo e a memória nele estratificada. Ao contrário, ocorreu o que Pollak (1992) denomina como o trabalho da própria memória em si, isto é, a memória passou a operar por si só, de modo
a manter os seus quadros de referência.

Atualmente o plano urbanístico constitui uma parte ínfima de Boa Vista, mas sua importância é inversamente proporcional. Além de concentrar o loco do poder político da capital, é no plano que se agrupam algumas das mais importantes instituições culturais, religiosas e econômicas de Boa Vista. Assim, esse lugar de memória se apresenta em sua plenitude material, simbólica e funcional.

REFERÊNCIAS

ALTERAÇÃO no plano urbanístico. O Átomo, Território Federal do Rio Branco, 05-16 maio. 1953 (2).

BALANDIER, Georges. O poder em cena. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.

BARROS, Nilson Cortez Crocia de. Paisagens e Tempo na Amazônia Setentrional: estudo de ocupação pioneira na América do Sul. Recife: Editora Universitária – UFPE. 1995.

CAVALCANTI, José Maria dos Santos Araújo. Recuperação e desenvolvimento do Vale do Rio Branco. 2. ed. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, Rodrigues & Cia,1949.

JORNAL A GAZETA DE RORAIMA. Edição especial. Boa Vista \ ano 101. Ano X. 09 de Julho de 1991.

MACEDO, Inês Rogélia Dantas. A implantação e a expansão das escolas públicas em Boa Vista na década de quarenta. 2004. 106 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em História Social do Mestrado Interinstitucional UFRJ/UFRR, Rio de Janeiro, 2004.

MARTINS, Elisângela. Memória do regime militar em Roraima. 2010. 187 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2010.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n. 10, dez., p. 07-28, dez. 1993.

OLIVEIRA, Laucides. O Estado. Diretrizes. Boa Vista/Roraima, ano 1, n. 2, Jan./fev. 1991. 38 p. (Edição Histórica).

OLIVEIRA, Rafael da Silva. Do rio ao traçado urbano, e novamente ao rio (alguns apontamentos para pensar a cidade de Boa Vista/RR). Revista Acta Geográfica, ano II, n. 3, p. 93-106, jan./jun. 2008.

OLIVEIRA, Reginaldo Gomes de. A herança dos descaminhos na formaçãodo Estado de Roraima. 2003. 404 f. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15. 1989. Disponível em:<http: //www.scielo.br/scielo>. Acesso em: 22 de setembro de 2009.

_______________. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n.10, p. 200- 212. 1992. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo>.Acesso em: 22 de setembro de 2009.

REVISTA SELVA. Um espelho da vida brasileira. n. 13, 1950.

SANTILLI, Paulo. Roraima: um cenário no início do século XX. In: Fronteiras da República. São Paulo: NHII/FAPESP, 1994. p. 17-37.

SANTOS, Nelvio Paulo. Políticas públicas, economia e poder: o estado de Roraima entre 1970 e 2000. 2004. 270 f. Tese (Doutorado em Ciências) – Desenvolvimento sustentável do trópico húmido, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará, Belém, 2004.

VERAS, Antonio Tolrino de Rezende. A produção do espaço urbano de Boa Vista- Roraima. 2009. 235 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

VON SIMON, Olga R. de Moraes. Memória, cultura e poder na sociedade do esquecimento. Margens: Revista Interdisciplinar do Núcleo de Pesquisa – CUBT/UFPA – Dossiê Memória & Oralidade. Abaetetuba, v. 1, p. 11-16. 2004.

 

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *